sexta-feira, 30 de junho de 2006

As músicas ocultas


A propósito de um evento festivo recente, ressurgiu-nos o sobressalto quanto à antiga dicotomia entre exigência e popularidade.
Isto é, até que ponto deve um amante de música ceder à pressão do apelo popular, normalmente impenitente e visceral?

Não é esta uma questão com resposta fácil. Deve respeitar-se o contexto, dando à massa o que ela anseia ter, ou deve procurar elevar-se o patamar, tentar lançar sementes de interesse pelo que está mais longe, mesmo correndo o risco de desagradar a dois terços?

Pistas para resposta possível: foi a modernidade, quanto à cultura, mais consistentemente resultado do consenso ou da ruptura? foi ou não sempre negativa a resposta primeira ao novo, pela inevitável estranheza e até rejeição? e será que não foi muitas vezes depois popular o que começou por aparecer rejeitado?

Quando chamada a terreiro, deve a cultura ceder, entregando-se sem desafiar, ou deve antes se necessário chocar, para depois talvez seduzir...pelo menos alguns?

Entendemos no DIVERSUS que a cultura que nos está adiante, que rejeitamos porque não conhecemos, ou porque o nosso paradigma comportamental é o de negar antes sequer de conhecer, essa cultura deve em primeiro lugar ser apresentada, sujeitando, neste caso, o ouvinte ao choque, eventualmente depois à adesão, embora mais provavelmente à rejeição.


Definitivamente, a facilidade é quase sempre adversária da exigência e só com exigência o consumidor cultural vai poder ele também ser actor cultural, participante da arte que consome. E aí o divulgador, mesmo o divulgador amador, tem um papel também ele desafiante, o de fazer pedagogia cultural, revelando a quem não conhece o que poderiamos chamar de músicas ocultas.

Se o faz, quando o faz, por vezes uma ou duas adesões em cem bastarão para que com propriedade se possa orgulhar de sucesso.

quarta-feira, 28 de junho de 2006

Souvenirs, dos Tosca


Quando se julgava esgotado o filão, eis que minério vivo, incandescente, irrompe à luz da noite de Viena.
Para já, a par das memórias de Quantic/Mr. Holland, a compilação maravilha de 2006 é esta!

segunda-feira, 26 de junho de 2006

pegar em Tom Waits para falar no YOUTUBE


De entre os inúmeros sítios de algum modo ligados às músicas - ou que à música aproveitam - um há que tem ultimamente sobressaído, por disponibilizar de modo legítimo ora excelentes ora apenas interessantes video-clips, com formatos frequentemente além da mera ilustração do hit mais imediato e sobretudo por franquear acesso a registos de autores e performers periféricos ao mundo editorial mainstream.

se pode encontrar extractos de concertos, de performances em shows de TV, entrevistas, pequenas notas biográficas, às vezes devaneios artísticos em outras artes de personagens conhecidas, de que é exemplo a inserção numerosa das aventuras cinéfilas de Tom Waits.

Trazemos como ilustração para esta referência aquela que consideramos uma das melhores canções justamente do enorme Tom Waits, 16 shells from a thirty out six (do melhor àlbum de Tom, o Swordfishtrombones), em muito boa versão audio ao vivo, escutável
aqui .
Boa versão audio, embora medíocre captação video, notoriamente resultado da aventura de uma qualquer handy-cam escondida nas galerias, pois o lema aqui é mesmo o Broadcast Yourself.

Esta performance ocorreu a 21 de Novembro de 2004 e constitui a (video) parte 11 de um concerto em Amsterdão, que com paciência e sem grande dificuldade se pode reconstituir/compilar pesquisando no YOUTUBE.

O YOUTUBE disponibiliza no entanto muito mais que música, oferecendo materiais video de natureza muito diversa.
Exemplos dessa diversidade: as imagens (históricas) da disputa em pista talvez mais brilhante no desporto automóvel, o famoso duelo Arnoux vs. Villeneuve, de há mais de 2 décadas, ou depois as dramáticas e traumáticas imagens do ataque terrorista de 11 de Setembro às torres de Nova Iorque.

A política, o desporto e tanto mais, mas sobretudo a música ao alcance de um browsing simples e de um clique, eis uma ideia magnífica, produto da pertinácia e da generosidade de alguns num sítio a descobrir por muitos, assim desejamos.

domingo, 25 de junho de 2006

a festa de Amadou et Mariam, músicos do Mali


Com a ajuda da voz e do ritmo únicos de Manu Chao, Sénégal Fastfood revelou-se como uma das mais vibrantes canções ouvidas ainda em 2005, produto da mente criativa do duo Amadou et Mariam e encontrável no belíssimo Dimanche à Bamako.


Fica por
aqui o registo vídeo de um bom excerto desse pedaço saboroso de ritmo, ponto de encontro exaltante entre a latinidade e a africanidade e pretexto como poucos, por estes dias, para a máxima exaltação do espírito e para o saltitar desenvergonhado de todos os corpos sensíveis.

domingo, 18 de junho de 2006

Hermínia: A voz de Cabo Verde



De Hermínia, grande e desconhecida, já velha e apenas repescada ao quase anonimato internacional por mérito da (boa) febre induzida por Cesária Évora, surgiu um dia uma obra notável, capaz de nos revelar como nenhuma outra antes ou depois a força da cultura cabo-verdiana. Falamos de Coraçon Leve, um disco-estreia de 1998, com uma Hermínia bem perto dos 60 anos e com escrita e arranjos principalmente de Vasco Martins.

É certo que muitos anos antes, acima de todos Antoninho Travadinha, mas também Os Tubarões (com a sua Tabanca, e de quem presenciámos excelente concerto algures por 1982), Zézé Di Nha Reinalda (com a melhor canção cabo-verdiana que conhecemos, Djentis D'as Água), os Bulimundo de Cabo Verde e até Bana (magnífica fôra a sua Tchadinha), também Paulino Vieira, os Finaçon e, claro, Cesária Évora, todos foram deixando, cada um a seu modo, marcas muito fortes da fantástica música de tão pequeno país.

Mas foi com este Coraçon Leve que sentimos estar realizada a síntese ideal, a força mais funda que identifica as obras maiores.

Da caleidoscópica música de tão cordial povo, Coraçon Leve e a poderosa Hermínia foram um dia grandes, eis a memória que queremos hoje partilhar
aqui.

quinta-feira, 15 de junho de 2006

O triunfo do hyphy movement, esta madrugada, em Lisboa


O dia seguinte ao concerto com DJ Shadow e seus 4 MC's convidados é tempo de celebração.

No Lux (verdadeiramente espectacular está o Lux), esta madrugada, ficou patente haver nova vitalidade na criação musical Pop norte-americana, neste caso proveniente da Califórnia, da Bay Area de San Francisco, com o chamado hyphy movement - hyphy é um calão californiano para designar algo como hiperactivo, neste caso reportado a ritmo elevado e vida frenética, característica do tecido cultural e da vivência destes grupos hyphy da Bay Area.

Em Lisboa, disse-nos Shadow, o hyphy teve a sua primeira experiência europeia enquanto live act (ainda hoje será a segunda, na Bélgica). Nesse sentido também, foi decerto um momento histórico aquele que testemunhámos.


O som aproxima-se dos modelos conhecidos do hip-hop mais aberto de fins dos anos 80, início dos de 90, muito na linha do som Public Enemy de então (da fase que termina em "Fear of a Black Planet"), mas com uma acentuada componente underground, uma reforçadíssima introdução do sampling e uma ainda maior teatralidade em palco.

Trouxe-nos o hyphy desta noite a sensação de estarmos perante um retorno às raízes hip hop, do tempo de antes da dulcificação por parte das grandes editoras, e desta vez do lado do costa oeste, isto é com nova matriz espácio-cultural. Recorde-se a força predominante da costa leste, designadamente de New York e do gueto de Brooklyn na primeira vaga.

Por outro lado, as palavras iniciais de Shadow, remetendo-nos para a ligação deste movimento a fenómenos desideologizados como as corridas ilegais de automóveis ou o consumo das drogas leves, levam-nos a crer estar-se aqui perante uma nova atitude, como que o remetendo para uma prática mais musical em si mesma, para lá das ambições extra-musicais, de intervencionismo filosófico e até político que a primeira vaga de há quase 2 décadas revelara.



DJ Shadow, no controle absoluto de todos os sons não vocais, aparece mais como o super-produtor que como músico de banda, novo conceito afinal para identificar os músicos da nova geração: neste tempo de hoje, já não há meros tocadores de instrumentos, mas sim melómanos manipuladores de todos os sons, super-engenheiros, master minds e outra vez afinal super-músicos eles mesmos.

Uma realidade que em boa verdade se exponencia primeiro nas fronteiras do Pop com o experimentalismo, do lado do Pop com Brian Eno, desde fins dos anos 70 e das suas colaborações com David Byrne.

O papel de DJ Shadow esta noite foi o de patrono e inspirador, não se percebendo bem o seu lugar neste movimento sócio-cultural, se de parte da coisa, se apenas visitante ou até referencial.

Seja como for, a sensação que ficou foi a de termos podido participar de um pedaço de suco vital da cultura negra e do bas-fonds urbanos de hoje, que já deu antes origem a tantas expressões musicais, do blues eléctrico ao jazz de fusão, do disco ao funk, ao hip-hop, ao rap.
Foi um momento de puro espectáculo, bem à medida do bom velho conceito de body and soul food, e talvez, por agora, o concerto surpresa deste 2006.


Shadow, num fim sem encores, prometeu voltar em 3, 4 meses, deixando o sinal de que para outra experiência hyphy.

Enquanto não retorna, não percam o video que encontrámos aqui.

quarta-feira, 14 de junho de 2006

Mr. Josh Davis (aka DJ Shadow) hoje em Lisboa, no Lux


Haveria várias razões para esperar de hoje à noite - a partir das 23:00 - um grande acontecimento no Lux.
Mas verdadeiramente há só uma que nos move, o efeito de surpresa esperável por parte de um criador que anos depois da consagração resolve mudar agulhas e experimentar outros sons, carregado de ritmos do underground da Califórnia, bem do cerne do chamado hyphy movement.
É o som da surpresa, o fulgor da desconcertação, mas também o sentido de risco, que nos animam para o ambiente que logo à noite Mr. Davis e seus convidados prometem criar.

Depois de DJ Shadow, outra razão para continuar no Lux, com o som que o Zé Pedro Moura vai pôr a correr. Haverá noite esta noite?

terça-feira, 13 de junho de 2006

António Cartaxo: convite para um excelente programa televisivo


Este António não necessitaria grandes apresentações, vivêssemos nós numa sociedade do centro-norte europeu.
Por aí, os índices de frequência dos concertos e das antenas rádio e televisão dedicadas à música clássica são outros, bem como é outro o interesse real pela erudição musical, pelo estudo e aprendizagem sistemáticos.

Por cá (ainda) não é assim, e a Antena 2 recolhe 0,7 % de share da audiência radiofónica, umas 30 vezes menos que uma RFM, e ainda umas 7 a 8 vezes menos que a TSF.

Tudo vem a propósito de uma mutação no papel social que António Cartaxo vem empreendendo.
Durante muitos anos o seu recanto fôra no magnífico programa "Em Sintonia com António Cartaxo", um espaço na Antena 2 (94,4) que felizmente perdura ainda, com emissão semanal.

Nos últimos anos, chegou-se à mais popular Antena 1, com apontamentos curtos diários, aí tornando mais acessível pequenos trechos, um pouco à laia de hits clássicos.

No passado sábado, com emissão semanal garantida para os próximos sábados (cerca das 22:30), estreou na RTPN o programa "Grandes Músicas", uns 28 minutos de puro deleite, em que se revela o corpo e a teatralidade surpreendente da voz que durante tantos anos sentimos como absolutamente magnética.

António é um pedagogo, um grande sabedor, e verdadeiramente um contador de histórias.

As pequenas histórias que contou no primeiro episódio, ilustrando músicas de Gershwin, Strawinski, Satie, Debussy e até Beethoven (revelando para espanto de muitos por certo uma passagem de jazz avant-la-lettre escondida da sonata para piano nº 32, uns 100 anos antes de se inventar o nome para uma música swingada, do género vaudeville rápido), claro que souberam a pouco e apenas pecam por esconderem excessivamente as músicas elas mesmas.

Um programa para melómanos e para todos os amantes de música, e uma oportunidade excelente para se travar conhecimento com uma das mais fascinantes personalidades da nossa rádio e da nossa cultura das últimas décadas.

sábado, 10 de junho de 2006

Fujiya & Miyagi e as palavras do mestre


O mestre Ricardo Saló estabeleceu hoje no Expresso - e o DIVERSUS subscreve, desta vez poderosamente antecipado por amigo próximo - a genialidade do som de Fujiya & Miyagi, no àlbum Transparent Things.

Destacamos as duas canções de abertura deste fresco àlbum, uma música deveras directa, sempre a pedir o estremecimento do corpo.


Mais uma demonstração - e na música há 40 anos, pelo menos, que tal se demonstra - de como muitas vezes é à simplicidade e à depuração máximas que o génio recorre para melhor se exprimir.

o cantar fabuloso dos Gnarls Barkley, em Crazy




Mais um disco bom com uma grande grande canção.
De St. Elsewhere há outros sons agradáveis, mas nenhum se chega sequer perto de Crazy, uma canção para todos os tops, acima de todos para o nosso top do bom gosto.
Neste link
aqui fica também o caminho para o espaço a partir do qual o imparável fenómeno também sociológico em que se tornaram primeiro explodiu, o Myspace.com.
Neste (imperdível) caminho deixamos a revelação do clip e da canção em extensão total.
E depois que dizer deste outro estalo, um vídeo com uma slow live version de ir ao tapete?!

Mas o que interessa mesmo é ouvir Crazy, dez, vinte, cinquenta vezes seguidas, mesmo que se canse sem remédio, tomado como que por uma doce e convulsiva febre Pop.
Grande mérito este o dos Gnarls Barkley, o de cumprir em 3 minutos a única e definitiva missão de um criador Pop: fazer fogo (mesmo que fátuo) com som.

Hot Chip


Ou de como de um bom àlbum pode nascer uma enorme canção, das melhores em 2006:
And I was a boy from school

sexta-feira, 9 de junho de 2006

atenção: regressou o som das paixões negras, sofridas, a poesia do mistério, a música do nosso lado obscuro, das nossas ansiedades



The Drift, de Scott Walker, é um disco muito difícil, mas espantoso, no sentido mais estrito, de desconcertante, e ao mesmo tempo no mais amplo, de belo, mesmo se tão negro e quase depressivo.

Scott Walker é ele mesmo um ser excepcional, editando músicas uma vez por década, sempre longe do palco e do mainstream, sempre surpreendendo, não somente pela incomparável classe, pelo timbre nunca ouvido da sua voz, mas também pela personalidade artística absolutamente única.
E que tal um criador que nos diz que faz música experimental porque quase todos os demais afinal fazem música acessível? Não há falta de quem faça Pop, antes de quem inove e rasgue caminhos.

Motivos mais que bastantes para ouvir e ver Scott aqui num dos raríssimos documentos em que de viva voz nos fala de si, das suas músicas e das profundezas de alma em que parece viver, pelo menos de há 20 anos.