domingo, 17 de setembro de 2006

quando as memórias de uns são novidades vivas para tantos


A história recente da música está felizmente repleta de exemplos como o que hoje nos ocupa. Dizemos recente falando dos últimos, talvez, 25 anos, ou seja depois de 1980, altura em que os horizontes da edição Pop europeia e norte-americana verdadeiramente explodiram e se democratizaram.

Foi primeiro o tempo de Brian Eno e David Byrne à pesca em águas asiáticas e caribenhas, foram depois etiquetas inteira ou parcialmente dedicadas aos sons de áreas regionais antes menosprezadas (do Brasil à Bulgária), outras ainda aos sons de todo o mundo (Real World, de Peter Gabriel, Luaka Bop de Byrne, mais tarde).

E no entanto o que ia sucedendo ao descobrir-se novas referências, muitas vezes mescladas tristemente em contextos criativos que as não mereciam, foi perceber-se que desde pelo menos os anos 50 e 60 um pouco por todo o mundo se exprimiam poderosas culturas musicais, quantas vezes obnubiladas mesmo localmente pelo mimetismo dos mais variados e fugazes ícones do mundo Pop do momento.

Panama: Latin, Calypso and Funk on the Isthmus 1965-75 é uma edição de 2006, resultado da descoberta quase acidental que um jornalista e produtor norte-americano de S. Francisco, de origem costa-riquenha, Roberto Ernesto Gyemant, fez quando decidiu, em 2002, ir tomar um copo refrescante a uma pequena cidade fronteiriça panamiana, David.

Como diz hoje Roberto, com COOL começou e é COOL a palavra que finalmente melhor define a força tremenda da sua inesperadíssima descoberta. A descoberta de uma vida.

Como qualquer melómano que se preze, perguntou na esplanada de David onde poderia encontrar discos antigos, para ouvir ou comprar e foi de encontro a António, um homem calmo e pobre, amador de música e coleccionador de discos, mas sobretudo homem de um part time absolutamente singular: ocupava-se a fazer e vender compilações de músicas para crianças e trabalhadores, numa lógica que não pode deixar de nos lembrar a compilação que todos os dias fazemos, esta geração IPOD que muitos somos.

Depois, o caminho de 4 anos de Ernesto foi feito com a colaboração de vários, desde o António até a variadas estações de rádio, pejadas de discos antigos aos milhares. Em fase mais adiantada, a obra que agora nos conquistou beneficiou ainda na imersão quase antropológica nos meios musicais panamianos ainda sobreviventes desse tempo, ou no contacto com descendentes e amigos, muitas vezes eles mesmos músicos emigrados nos EUA, artistas à procura de um depois nunca encontrado sucesso na grande nação vizinha.

Em Panama: Latin, Calypso and Funk on the Isthmus 1965-75 ouviremos fundo de jazz, algum calypso e muito funk em registos que nos são familiares, mas também novas tipologias e novas catalogações dadas pelos próprios nos pequenos 45 rotações de então, como doo-woop calypso, funk tropical, soul boogaloo, guaracha soul, salsa bossanova ou funky soul. Ouviremos músicos e bandas inteiramente desconhecidos para todos nós e que registavam em disco não tanto para venderem mas sobretudo para, pela sua oferta, conseguirem contratos para festas de aniversário, casamentos e naturalmente para todos os inúmeros momentos festivos próprios de uma cultura de festa como a panamiana.

A experiência que tivemos na audição destas 15 canções, nenhuma antes editada fora do Panamá e quase nenhuma antes em CD mesmo no Panamá, foi assim como o conhecimento de sopetão daquela novidade da nossa própria infância que de repente alguém nos traz e que nós em absoluto desconheciamos. Inteira mas muito grata surpresa afinal.



Panama: Latin, Calypso and Funk on the Isthmus 1965-75 é finalmente talvez o melhor e mais agradável disco que nos foi dado ouvir dos lados da América latina de há muitos anos, por certo mais de uma década, e é um contributo mais para a percepção que vamos criando que só o euro-centrismo nos impede frequentemente de alcançar que, na música como na vida, muito de novo a memória tem sempre para nos revelar, numa espécie de trade off histórico, em que o comércio se faz agora em felicidade, mesmo que escondida pelo bolor de 30 a 40 anos em prateleiras às vezes húmidas e pobres, como as de António em David, uma cidade pequena do Panamá, micro-cosmos do nosso mundo.