segunda-feira, 27 de março de 2006

J.S. Bach, a propósito da música, ou o inverso

Há anos discutiamos com espíritos renitentes a razão de ser de estar a música no centro de uma vida, neste caso a vida de um de nós.
Recorremos então ao exemplo de um médico europeu (Albert Schweitzer) que, em África (no Gabão), em missão humanitária, ao mesmo tempo que ajudava as populações com raro mérito, foi autor de um cruzamento cultural vivo, único e definitivamente autêntico.
Uma experiência para a posteridade traduzida por intérpretes terceiros, no magnífico disco "Lambarena", e que consistiu em se fazer tocar música de J.S. Bach por músicos amadores africanos, com instrumentos locais adaptados como se se tratasse de agrupamentos de câmara.
A música, tal como a sentimos há mais de duas décadas, é mais que o cigarro que muitos fumam, mais que um vício.
Não é, de todo, apenas aquele rumor non stop que colocamos no ar para encher vazios, apenas porque incomoda o silêncio.
É mais, muito mais, que o alimento que ingerimos a horas certas, bem mais que pão para o estômago.
A música é assim como a àgua que bebemos em dia de 45º, uma razão de vida.
É o ombro intestino para os dias difíceis, a força que ajuda a tolerar a infinita normalidade de todos os dias, as angústias de alguns outros, a paixão icorrespondida, ou apenas a excessiva.
A música pode e é para milhares pelo mundo inteiro a razão maior, o filho que cresce connosco, ao mesmo tempo que é a mãe, fonte e modelo, lugar de absoluta paixão.
É ao mesmo tempo instrumento do silêncio e da solidão.
Pensar em vidas de compositores como Bach, Mozart, Beethoven, Mahler, Miles Davis, Louis Armstrong, Bill Evans, Jacques Brel, Billie Holiday, Jim Morrison, tantos outros, é pensar definitivamente em paixão, como se o coração de todos eles ao bater tivesse feito soar sempre uma melodia, um ritmo, uma valsa.
E de novo Bach e os cruzamentos de culturas. Muitos anos antes do médico Schweitzer, houve Heitor Villa-Lobos (1887-1959), um compositor erudito do Rio de Janeiro que cruzou também Bach com as melodias tradicionais brasileiras, designadamente com as sonoridades mais ancestrais encontráveis ainda então na densidade amazónica.
As notáveis "bachianas" de Villa-Lobos são outra poderosa demonstração da verdade maior de que a grande música, como a grande literatura, a poesia, o grande cinema não prescindem: a grandeza do espírito estabelece-se com valores fortes de humanidade, quase sempre com simplicidade, procurando a intemporalidade e a universalidade. Mesmo sem o saberem. Como se esse resultado fosse um prémio, mais que um móbil.