domingo, 21 de janeiro de 2007

A Joy Division


Ian Curtis tinha tudo para surgir aos olhos de quem perscrutar o último quartil do vigésimo século como um ícone moderno, alguém que olhou ao seu redor, não gostou, chorou e finalmente soçobrou, isto é suicidou-se.
Aliás, o ícone perfeito não pode ser senão tremendamente anormal (no sentido inglês de abnormal, de não normal), idealmente com fim abrupto.

No Portugal de 1980, teenagers de então como este escriba, ouviam pela primeira vez Love Will Tear Us Apart em alinhamentos qe incluiam com frequência também semi-lixo (de que ainda hoje se gosta) como Ian Gillan ou Motorhead, a par de ouro puro como os Echo and the Bunnymen de Crocodiles, ou da filigrana que foram os UB40 de Signing Off ou o Tom Waits de On Heartattack and Vine.

Interlúdio para dizer que, em 1980, a rádio, no caso o FM da Rádio Comercial, era livre e escolhia pouco. No essencial, Luis Filipe Barros (com o Rock em Stock) ou António Sérgio (com os seus vários programas, Rolls Rock ou Som da Frente), apenas pretendiam dar ar a tudo o que cheirasse a novo, ao mesmo tempo que não conseguiam largar amarras dos sons metálicos ou até do mainstream FM.

Foi então pelo stream livre da FM que primeiro nos surgia Ian Curtis, ao mesmo tempo que se acrescentava a notícia da sua morte trágica (por enforcamento, creio).
Curtis era apenas um músico, mas o surgimento de Transmission, pouco depois também do àlbum Closer, foram suficientes para deixar aqueles 17 anos de idade em estado de choque e depois em ponto de ansiedade.

De modo inelutável, a força do ícone, a substância do sofrimento que Ian Curtis vertia na música, tocava e alastrava a muitos e penetrava também a vida cinzenta deste então adolescente, curioso, ansioso e inconformado.

E eis que 27 anos depois, hoje, 1980 surge claramente como o ano-chave da música popular ocidental, aquele tempo em que a profusão de géneros, a autêntica explosão de liberdade criativa, se materializou em dezenas de discos que marcaram o momento histórico de viragem, na curva do tempo em que a Pop que tinha acontecido vira agulhas e aponta para o que seria doravante.
1980 foi assim o ano por excelência de todos os códigos, o mais forte sendo mesmo Remain in Light dos Talking Heads de David Byrne.

Chegado 1982 - um tempo em que conseguir discos (de vinil, é claro) com prensagem decente era tarefa hercúlea e especialmente onerosa, e em que mais de metade daqueles de que gostávamos apenas estavam disponíveis por importação, a preços 3 vezes superiores - e eis que amigo firme se desloca a Amsterdam e traz a este escriba três discos absolutamente indisponíveis em Portugal, mesmo nos canais de importação (!!!): os dois primeiros àlbuns dos Doors (edição dupla superior, com The Doors e Strange Days), Blonde on Blonde de Bob Dylan e o então quase incógnito e fundador Unknown Pleasures, da Joy Division.
Nunca esse amigo, o Fernando Oliveira, alguma vez imaginou que transportava na sua mochila um dos primeiros exemplares de Unknown Pleasures que em Portugal então se ouviria e afinal um pedaço da história da cultura urbana contemporânea. Visto daqui, que responsabilidade tiveste ó Fernando!

E que dizer dos primeiros momentos de audição deste primeiro da Joy Division, a fazerem este que vos escreve sentir-se a meio caminho entre o céu e o inferno, algures entre a estranheza e a sedução, aquele mesmo terreno que sistematicamente há décadas propende à descoberta obsessiva e depois ao vício puro e duro (que alguns chamam de melomania)?

Claro que 1979 - antes da tempestade (1980) vem sempre a bonança, lá diz o povo - tinha sido e será sempre sobretudo o ano de London Calling, também ainda de Forces of Victory, de The B-52's, de Entertainment, também do magnífico The Specials.
O certo é que, visto deste nosso tempo, pode acrescentar-se que a primeira experiência séria de juntar alma à electrónica foi o valor específico acrescentado por este Unknown Pleasures à história de 1979.

Há na nudez quase primitiva cantada sobretudo pelo baixo e pelas guitarras, e amplificada ao infinito pelas vozes de Curtis, neste som de 1979, em Insight, em New Dawn Fades ou no eterno She's Lost Control, algo, uma força, um rasgo de espiritualidade em registo tal que não mais a Pop voltou a encontrar.
E Closer, um ano depois, em coincidência com a morte de Ian, haveria de confirmar que em 1979 começara de facto algo de meteórico e por isso irrepetível.
Com Unknown Pleasures, e a assinatura na produção do génio de Martin Hannett, na fundação da etiqueta Factory Records, começava o fascínio que, desde Manchester, dizia ao mundo que a alma muitas vezes dói, e que nem sempre há remédio e sobretudo que é preciso cantar essa dor, esse medo, essa incerteza.
E se dói ouvir Joy Division, mesmo passados estes 28 anos!?