A performance de Ursula Rucker no S. Luis, ontem, aproximou-se muito de um recital poético.
Esse lado recitativo, apanágio já das suas edições em disco - Ursula editou até hoje dois àlbuns de canções magníficos, "Supa Sista" e "Silver or Lead" - não diminiu no entanto o elevadíssimo patamar musical a que Ursula e Tim Motzer, este um multi-instrumentista de grande brilho, se alcandoraram.
Ursula aliás chama poemas às suas canções.
O concerto de ontem no S. Luis valeu pela confirmação do seu valor enquanto "persona" complexa, movida por uma atitude cultural empenhada, uma arte com bandeiras: a mulher, a criança, os americanos negros.
De Ursula Rucker guardámos a convicção que a efemeridade não mora ali e que outras obras de vulto se seguirão inevitavelmente. A sua música, densa, rica, enérgica, sempre luminosa, ganhou ao vivo uma objectividade que apesar de tudo o segundo disco aqui ou ali arriscou deitar a perder.
"What a woman must do", exactamente inserto em "Silver or Lead", foi intenso e talvez o momento da noite.
Das múltiplas intervenções de Ursula entre canções registamos uma que não poderiamos esquecer neste desabafo: "Portugal has something special".
Ontem Portugal confirmou que algo de especial há realmente nos portugueses, particularmente em Lisboa: cidade que acolhe em dois dias consecutivos três vultos tão extraordinários como Ursula Rucker, Kraftwerk e David Byrne e que a todos presenteia com farto público, só pode ser cidade viva, culta, inteligente.
Agora que se aproximam outros momentos de brilho assegurado, Micatone, Lambchop, Pixies, Massive Attack, vamos provavelmente assistir à luta de titãs entre a força viva das culturas novas e o frenesim oco dos festivais mainstream.
E essa já seria uma boa deixa para um outro poema-canção de Ursula, como ela sabe fazer: talvez "the white city dilema".