Na morte do António Sérgio, de que soube há poucas horas, não perdi apenas alguém que pontuou a minha viragem cultural dos teens para os 20's, ou do liceu para a faculdade. Em mais que um sentido posso mesmo dizer que o que me ligou, o que me liga ainda ao António Sérgio é a proximidade mais própria de um familiar. E morrer aos 59 anos é uma daquelas injustiças que o António Sérgio, eu e não sei quantos milhares que o conhecemos e com ele "navegámos" não mereciamos.
Conheci pessoalmente o António Sérgio em 1982, eu um anónimo de 19 anos, ele já então um consagrado mentor da rádio moderna portuguesa.
Quando o conheci trocámos discos. Eu pedira-lhe por telefone - sim, que o António Sérgio atendia mesmo o telefone aos seus escutantes - que me emprestasse discos dos A Certain Ratio (o "To Each...") e dos Gun Club (o "Miami"). Perguntou-me então se eu também teria algum disco interessante que ele pudesse não ter. Falei-lhe no disco desse ano dos Stiff Little Fingers, que por fortuna eu comprara na Feira da Ladra, o "Now Then", e logo anuiu.
Era um homem relativamente pequeno, e a sua voz quando nos conhecemos surpreendeu-me pelo volume. Era uma voz grave e musical, mas de baixo volume. E eu que durante mais de um ano o imaginara um homem grande e dotado de um vozeirão, como sempre pensamos nos nossos heróis.
Quando fui devolver-lhe os discos que me emprestara, generoso, trouxera logo outros, sem que eu lhe pedisse, um dos Cramps ("Songs the Lord Taught Us"?) e um segundo que já não recordo.
Ouvir o António Sérgio, entre 1980 e 1984, teve o deslumbrante efeito de me fazer subir de patamar de exigência. Foi com ele que escutei centenas de novas referências culturais, foi com ele que deixei a sedução do Pop mais fácil do "Rock em Stock" do Luis Filipe Barros e do Rui Morrison (ainda assim outro belíssimo programa de rádio e outro marco na minha paixão pela música). Mas o António estava bem mais adiante e foi para mim o grande facilitador a caminho de outros grandes divulgadores culturais, como o seu contemporâneo e felizmente ainda activo Ricardo Saló.
O António Sérgio era um homem dividido. Uma parte de si amava os sons europeus e norte-americanos mais inovadores e outra sua parte continuava ligada à música pesada.
Foi com António Sérgio que duas das grandes etiquetas da primeira metade da década de 1980 foram em Portugal divulgadas, a Factory Records e a 4AD. E tanto mais de inovador deu o António a escutar à minha geração, quantos sons, quantas etiquetas, quantos novos caminhos e possibilidades.
Há pequenos e maiores episódios soltos ligados ao António Sérgio que me povoam a memória, alguns tão marcantes como o seu empenho na divulgação do primeiro single ("Sémen") dos Xutos & Pontapés, ou a produção do primeiro álbum da então jovem banda de Almada.
Foi o António que impulsionou uma ímportante série de edições internacionais em Portugal, primeiro na etiqueta "Rotação" (da "Rossil"), depois na Dacapo.
Com o António lembro ainda inúmeros bilhetes para concertos que ganhei, ou singles, ou até álbuns.
Recordo sobretudo um disco que ganhei com o António Sérgio, por altura de uma vinda a Portugal dos Teardrop Explodes de Julian Cope.
Como pergunta de aferição, perguntava o António sobre o que poderia acontecer que fizesse perigar a qualidade do espectáculo da banda de Liverpool. Recordo-me bem da minha resposta: que os metais exibidos em "Wilder", o segundo álbum nessa mesma altura editado, tinham um papel de tal forma menos homogéneo e menos natural e entrosado face ao seu álbum de estreia, que o concerto arriscaria fazer perder a força encontrável no anterior "Kilimanjaro".
Teremos então estado uns 3 a 4 minutos ao telefone, até que o Sérgio se convenceu do risco para que o alertava, disso se fazendo eco depois em antena.
Reencontraria eu o António largos anos depois em antena na rádio Voxx, pela mão do seu amigo e também ele cimeira referência da música contemporânea o Luis Montez.
Nessa altura, mais de uma década depois do primeiro contacto com ele, as minhas referências culturais tinham já mudado muito e dificilmente me revia nas escolhas do António.
Mas nenhum afastamento, nem quase 3 décadas de uma provável divergência cultural apagam aquilo que entre os homens perdura de melhor, a comunidade do bom património. E é parte desse património que hoje sai a perder, com a perda de um amigo e de um enorme vulto do meu tempo de jovem. Recebe lá um abraço ó António.
Esperei alguns dias para escrever sobre o concerto de quarta-feira de Jon Hassell, acontecido no Teatro Maria Matos. No fim Jon Hassell veio lamentar-se de uma performance em seu entender desapontante. Talvez também essa desconcertante atitude tenha relativizado o efeito do que se tocou nessa noite de Lisboa. Como um dia um poeta popular bem perguntava, pode alguém ser quem não é? A música mais recente de Jon Hassell deixou-se seduzir por uma dimensão onírica que em termos de precedentes consigo situar no chamado Jazz nórdico, que também em Lisboa já antes escutei a John Surman ou terje Rypdall. A música de agora (última década) de Jon destaca-se pelo quase paisagismo tão patente em "Last Night the Moon Came Dropping Its Clothes in the Street", o portentoso disco de 2009. Nada de errado pois em fazer assentar uma performance ao vivo na produção mais recente com a Maarifa Street, hoje, por sinal, integrando dois músicos moruegueses. Ainda antes da auto-crítica final do génio norte-americano já o público tinha provado o respeito pelo resultado daquela ida. Não entusiasmo, mas respeito. Não bateu palmas entre trechos, mas aplaudiu longamente no fim dos quase 80 minutos. É que não se tratava de um concerto Pop. Jon Hassell nunca foi um músico Pop. Quanto a nós, sentimos bem o efeito nocivo do demasiado Pop que enche a nossa melomania de hoje. É preciso escutar ainda melhor Jon Hassell e aqueles que como ele estão além da tentação popular. Vem daí a conclusão de ter sido este um dos meus concertos do ano. Foram 80 minutos de um utilíssimo alerta cultural.